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Archive for the ‘Voltaire’ Category

Voltaire Político – espelhos para príncipes de um novo tempo é parte da tese de doutorado do autor, dividida em três e lançada em conjunto com Voltaire Literário e Voltaire Historiador. Nesse livro, o professor Marcos Antônio analisa as obras históricas do filósofo, sobretudo História de Carlos XII, História da Rússia e O Século de Luís XIV buscando relações entre o pensamento voltairiano e a tradição dos espelhos de príncipe, antigo gênero literário dedicado à educação dos soberanos e delfins na arte de governar.

O príncipe é, de fato, o protagonista de grande parte dos escritos voltairianos, de modo que seja possível esboçar, se não uma teoria, uma concepção de monarca ideal para o iluminista.  Para formar uma ideia consistente do que seja esse monarca ideal, o autor percorre o pensamento político do filósofo presente em sua representação de Carlos XII da Suécia e de Pedro, o Grande, da Rússia. À comparação das imagens dos dois monarcas, torna-se bem claro ao leitor a transformação da ideia de grande homem procedida na época de Voltaire. O rei-herói, rei belicoso, enaltecido pela tradição, dá lugar ao rei-filósofo, déspota esclarecido, alvo da pedagogia voltairiana. Carlos XII é um herói, engrandecido por suas prodigiosas vitórias militares; Pedro, um grande soberano, um civilizador. Entre Carlos, espécie de Aquiles que luta pela própria imortalidade nos tempos, e Pedro, que, segundo a visão do filósofo, luta pelo progresso humano ao desenvolver o seu país, o modelo a ser seguido pelos reis esclarecidos é, naturalmente, o do russo. É o mesmo pensamento expresso em algumas das Cartas Filosóficas, segundo o qual estava-se na época em que o grande homem não era mais o guerreiro colecionador de feitos, mas o homem genial, criador de ideias.

A análise incide também sobre outros aspectos da historiografia de Voltaire e seu vínculo com a política. É um livro de interesse para quem gosta de teoria da História, Ciência Política clássica, Iluminismo e Classicismo. O mesmo vale para os outros dois volumes.

Passeio da Imperatriz Elizabeth pelas ruas nobres de São Petesburgo, Alexandre Benois, 1903.

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Dalessius é calígrafo e possui uma relíquia. Pobre e obsessivo, conta sua misteriosa história, em que o rodeiam duas companheiras permanentes: a escrita e a morte.

A relíquia é o coração de Voltaire. Dalessius, após um difícil início de carreira, é enviado a Ferney para o cargo de calígrafo do filósofo. Porém, pouco tempo após sua chegada, é enviado a Toulouse para acompanhar em segredo o caso de Jean Calas, protestante condenado à morte, acusado de ter matado o filho que convertera-se ao catolicismo. Em Toulouse, conhece Kolm, ex-carrasco, maculado para sempre por seu antigo ofício e condenado a não tocar em nada nem ninguém senão por uma mão mecânica que carrega na ponta de um bastão.

Uma mulher misteriosa chama a atenção de Dalessius. Na viagem a Toulouse, feita no chamado Correio Noturno (transporte de mortos para suas cidades natais), cujo dono era seu tio, Dalessius se deparou com uma moça, um cadáver surpreendentemente vivo e belo. Apaixonado pela morta, assombrou-se quando, na cidade, a viu na janela de uma casa de prostitutas. No momento em que ia falar-lhe, invadem a casa monges dominicanos degolando todas as moças. Por um acontecimento extraordinário, descobrimos que a moça é um autômato que simula perfeitamente uma humana.

O livro é assim. Com recursos do imaginário fantástico do futurismo pré século XX, a história é tomada por dispositivos mecânicos que, junto de artes como escultura, caligrafia e pintura, dão um ar metafórico a tudo – coisa, aliás, bem voltairiana. O autômato que copia o homem com perfeição é tradicionalmente uma metáfora da falsidade da vida, assim como o ofício de calígrafo, que tem seu sentido na forma das letras e palavras, não em seu sentido ou verdade. A história é sobre a sedução do irreal.

Talvez seja por isso que a morte, critério último que acusa a vida, tenha um papel tão constante na novela. Ela nunca sai de cena. Vejam só: os pais de Dalessius morreram em um naufrágio; ele leva o coração do filósofo defunto; viaja na companhia de cadáveres; cuida da correspondência de Voltaire, a qual é repleta de ameaças de morte; vai a Toulouse em virtude do caso Calas (duas mortes); conhece um ex-carrasco (que agora tinha como emprego lavar corpos); a chacina na casa das prostitutas. Após isso tudo, parte da história se passa em um cemitério, há uma menção ao Apocalipse e são apresentadas, na Faculdade de Medicina,  máquinas de execução mais eficientes, entre elas a Halifax.

Além da morte, também a escrita é algo que sempre está ali. Pelo ofício do protagonista, certamente, mas também pelas descrições do mundo por olhos tão acostumados a pena e tinta. A caligrafia é uma arte de mistérios, delineada como uma alquimia. Uma variedade de tintas, penas, tinteiros, ingredientes, dão à escrita os mais variados e fabulosos efeitos. Desde cores que desaparecem até aquelas que matam. Os momentos em que escrita e morte se encontram são os grandes momentos da novela: o assassinado da jovem com o Novo Testamento transcrito em seu corpo, a degola de Silas Darel com a pena do protagonista, etc.

A morte pela pena e o traço definitivo; a paixão por uma moça que se confunde com as estátuas do porão da Academia de Artes; a decadência do calígrafo e do carrasco na aurora da imprensa e da guilhotina. A novela é rica em metáforas e muito bem escrita. Apesar de, a certa altura, a narrativa parecer um amontoado de fatos incompreensíveis entre si, após se perceber que o protagonista compartilha dessa impressão com o leitor, sabe-se que, na verdade, é apenas mistério.

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O Dicionário Filosófico parece uma confortável conversa, sobre os mais diversos temas, com uma mente brilhante. Apesar de ser dito, no prefácio do autor, que não se trata de um livro para ser lido de uma vez só, decidi pegá-lo na íntegra para preservar esse contraste entre assuntos e perceber de maneira mais forte o ecletismo de sua mente genial. Somente por isso, pude perceber que a obra fora escrita na ordem alfabética em que fora editada, o que torna muito divertidas as referências entre um verbete e outro, como esta: É difícil passar das pessoas que se beijam àquelas se devoram (verbete Antropófagos, que vem após o verbete Amor).

Ao contrário do que parece, o Dictionnaire Philosophique não pode ser tomado como uma boa síntese do pensamento voltairiano. Acredito que seus Contos levam muita vantagem no quesito de abrangência de idéias. O Dicionário é mais uma conversa organizada por tópicos, bom para esclarecer dúvidas objetivas, imediatas (como: Voltaire acreditava em Deus? Voltaire era monarquista? etc), mas fraco para formar na mente do leitor uma ideia ampla da visão de mundo do filósofo. Para tanto, os Contos continuam sendo minha primeira sugestão.

Mas é claro que o Dicionário tem seus méritos. O mais importante deles é oferecer ao interessado um leque de respostas a perguntas que ele nem tinha pensado em formular ao autor. O verbete sobre os antropófagos, citado, é um desses exemplos. Também aquele sobre o amor, aquele sobre a beleza, sobre o luxo, sobre inundações e um, notável, sobre crítica literária. Futuramente, eu talvez escreva sobre os que achei mais interessantes. O fato é que essas pautas arbitrárias são questões sobre as quais não há espaço em outras obras do autor. O Dicionário Filosófico é um livro onde se puderam colocar ideias sobre absolutamente qualquer tema, o que permite ver o gênio de Voltaire se debruçar, muitas vezes de modo desleixado, sobre assuntos insólitos. E, não raro, desse acaso saem pensamentos bastante incisivos, coisa característica da sabedoria subversora da época.

No entanto, o Dicionário não é invertebrado. Apesar de os verbetes curiosos serem um atrativo pelo qual já vale a leitura, há aqueles principais, que compõem nitidamente o motivo pelo qual a obra tornou-se uma das mais valorizadas pela posteridade. São eles: Certeza, Destino, Deus, Igualdade, Fanatismo, Idolatria, Liberdade, Religião, Superstição, Tolerância, Tirania. Dentro desses temas de suma importância para o pensamento iluminista, não encontramos, no Dicionário Filosófico, a essência da ideia que deles fazia o século. Encontramos respostas a perguntas pontuais, que, juntas, podem formar um esboço, altamente comprometido, do que seria o pensamento corrente. Comprometido porque, embora Voltaire pretenda, com a obra, um catecismo do esclarecimento, mal consegue um catecismo voltairiano. A enxurrada de ideias que acomete o leitor a cada um desses tensos verbetes não é proporcional à forma pretensamente preceitual da obra. Muitos desses verbetes, como aquele sobre idolatria, fazem uma análise histórica relativamente longa salpicada de veneno anticlerical. Portanto, muitos verbetes são antes ensaios que definições lapidares.

A enxurrada de ideias, porém, revela também conceituações muito hábeis. E, se a escrita ensaística parece imperar em alguns tópicos, em outros o filósofo desenvolve um raciocínio que sabe muito bem de onde parte e onde chega, fazendo uso da lógica corrosiva caracteristicamente sua. Preconceito é uma opinião sem julgamento (verbete Preconceitos); Quase tudo o que está além da adoração de um ser supremo e da submissão íntima a suas ordens eternas é superstição (verbete Superstição). Partindo de definições tais, quase axiomáticas, o filósofo traça seu curso típico e expõe nuas as igrejas cristãs e o carrossel de suas incoerências.

Certamente, esses verbetes mais estrondosos são os que mais chamam atenção. Mas não ocupam, fisicamente, a maior parte do livro. A chamada crítica religiosa é a categoria dominante do Dicionário. Dos 117 verbetes, aproximadamente 45 são bíblicos, e, ademais, são os que consomem maior número de páginas. De qualquer modo, a análise rigorosa, criteriosa, dos fenômenos cristãos estende-se por toda obra, de modo que a pluralidade dos verbetes é um pretexto para se criticar por todos os lados imagináveis a antifilosofia religiosa.

O lado voltairiano menos aceitável ao leitor muito escrupuloso surge então: um tal empenho na crítica bíblica resulta em fortes chicotadas aos judeus em geral. O povo judeu, para Voltaire, era o mais medíocre dos povos. Jamais contribuiu à civilização, sua cultura é uma cópia das circunvizinhas e da grega. Sua ocupação da Palestina é contrária ao direito natural do povo filisteu. Jamais colaborou ao desenvolvimento dos Estados senão por meio de empréstimos usurários. O ataque mordaz aos judeus e à cultura judaica atravessa toda obra. Com isso, costuma-se posicionar Voltaire entre os pais do antissemitismo moderno. A tal afirmação, eu responderia: ‘Com certeza Voltaire não gostava de judeus – é preciso ser cego para não vê-lo. Mas seu pensamento não tem relação confiável com as doutrinas antissemitas posteriores, porque Voltaire jamais falou em nome da perseguição; fazê-lo seria abrir mão do núcleo de sua filosofia: a tolerância. Então, apesar de toda crítica ao povo judeu, o filósofo nunca deixaria de achar absurda sua perseguição’.

Apenas mais uma curiosidade. O artigo Igualdade traz o raciocínio de que (literalmente) o gênero humano, tal como é, não pode subsistir a menos que haja uma infinidade de homens úteis que nada possuem, para chegar à conclusão de que a igualdade é, ao mesmo tempo, a coisa mais natural e a mais artificial do mundo. Marx, parece-me, é grande tributário de Voltaire.

Edição: Dictionnaire Philosophique. Éditions Garnier Frères, Paris, s/d. Com introdução, variantes e notas pelo intrometido Julien Benda.

 

Jean-Baptiste Le Vachez, L'homme unique a tout age. 1778.

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Voltaire Literário é parte da sequência completada por Voltaire Político e Voltaire Historiador, lançada pelo professor Marcos Antônio Lopes. Também tenho os outros dois, pretendo ler em seguida. São todos pequenos, de menos de 150 páginas, e poderiam mesmo fazer um só volume. Aliás, li em algum lugar que esse três livros são, originalmente, a tese de doutorado do autor, chamada Voltaire: a História, o Príncipe e a Virtude.

Basicamente, Voltaire Literário trata dos aspectos historiográficos presentes nos contos do filósofo. São cinco capítulos, organizados tematicamente, que buscam demonstrar que, nesses contos, há mais do que divertimento, ridicularização e ataques à Igreja. Com certeza, como em toda sua obra, a ficção de Voltaire é repleta de características circunstanciais, que estavam, perfeitamente, nos propósitos do autor. O que o professor Marcos Antônio parece fazer é evidenciar, por trás desses aspectos rasos do texto, relacionados, por exemplo, à bajulação da duquesa de Maine ou ao escárnio de jesuítas, o debate teórico que se desenrolava sobre como se deve escrever a história.

Voltaire participa da transformação que, no século XVIII, se definiria como uma espécie de secularização do pensamento histórico, no sentido de que a história providencialista, representada, entre outros, por Bossuet, sofria, nas palavras do professor, a pressão de impactos particularmente mortais. Nosso filósofo leva ao ridículo a tradição mostrando suas incoerências da maneira, digamos, menos delicada, como em Os Ouvidos do Conde de Chesterfield e o Capelão Goudman, Memnon e Zadig.

As formas que Voltaire dá a seu pensamento sobre história, nos contos, estão contidas no carrossel de desventuras por que passam seus protagonistas. Apresentar a evolução humana como um acúmulo de erros levados a cabo pela ambição desenfreada e o fanatismo dos homens é o modo como o filósofo faz, em Cândido e Zadig, por exemplo, passar diante dos olhos das personagens o mundo como ele é. A exagerada pretensão realista de Voltaire, que, para mostrar que este não é o melhor dos mundos, mostra que é o pior, parece ser uma resposta à visão idealista da história sagrada, e, na verdade, a qualquer visão que esconda do homem seu destino funesto nesse vale de lágrimas.

Para o Príncipe das Luzes, a história carece de sentido, pouco mais é que séculos e séculos de corrupção, vício e pretensão, entrecortados por pequenos períodos de grandeza encabeçados por homens como Júlio Cesar e Luís XIV. O único progresso que há, e isso torna desesperadoramente lenta a evolução humana, é levado a cabo por espíritos esclarecidos, que possuem uma visão acima da comum dos homens. Tal interpretação da história insere Voltaire, segundo a tese do professor Marcos Antônio, na tradição historiográfica clássica, pois se por um lado a presença de Deus na história do homem é combatida, por outro o providencialismo é posto nas mãos de monarcas ilustrados. Assim é que o personagem do príncipe figura na maior parte de seus contos, de modo que tais estórias possam ser colocadas na memória dos espelhos de príncipes, mas em formato iluminista. Isso faz com que a ruptura proposta por Voltaire em relação ao pensamento tradicional, embora tenha tido um valor imenso, não tenha sido total.

Humanizando os monarcas consagrados, destruindo mitos religiosos e nacionais, expondo as mazelas dos homens nesse mundo deveras prosaico, os contos de Voltaire são a imagem da ficção iluminista que constitui, em sua guerra à tradição, como diz Paul Hazard, citado por Marcos Antônio Lopes, a maior modificação que a literatura alguma vez terá sofrido. Talvez isso explique por que o autor tenha preferido os contos, uma vez que a obra ficcional de Voltaire seja muito maior que o número de contos que escreveu, compreendendo muito de poesia, epopeia e teatro. Talvez os contos filosóficos, sendo um gênero praticamente inventado pelo filósofo no calor do combate, correspondam mais facilmente às expectativas do autor acerca da relação entre filosofia e literatura. O conto voltairiano, de fato, se presta melhor a ilustrar o deslocamento operado na literatura iluminista, quando a estética dá lugar à crítica, ao chicote banhado em sal e vinagre (adorei essa expressão). Apesar de tudo o que os contos oferecem, eles não são, no entanto, mais que uma parte do Voltaire literário.

Ilustração para Zadig, ou O Destino. s/d

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Quando peguei o livro de Lepape, esperava uma biografia de Voltaire, uma biografia simples, que me informasse sobre o que de mais saliente se sabe da vida do filósofo, umas interpretações, contextualizações, etc. Mas acabei me deparando com uma obra magnífica de história intelectual do século XVIII.

Partindo da imensa trajetória do escritor, Lepape estende sua análise à transformação do conceito de homem de letras em curso na época. O comprometimento filosófico na luta contra as superstições que mascaram a crueza das coisas tornou-se tão generalizado que transformou a própria idéia de filosofia. O intelectual por excelência, personagem moderno, teria nascido da relação entre esse comprometimento e o estatuto tradicional de homem de letras. É interessante que, mesmo fazendo uso nítido de polarizações entre tradição e novidade, o livro não cai na vala do maniqueísmo redutor. As reflexões, por exemplo, sobre cortes e salões, ou sobre imprensa autorizada e ilegal, não fazem uso de conceitos mofados da historiografia acadêmica e praticamente não há discussão em torno de nomes. O que muito me agrada.

Fluindo quase naturalmente, a obra faz apresentações invulgares sobre as personalidades mais relevantes da intelectualidade coetânea que participou direta ou indiretamente da vida do filósofo, como Montesquieu, Jean-Baptiste Rousseau, Diderot, d’Alembert, La Beaumelle, Fontenelle, Beaumarchais, Jean-Jacques Rousseau, Malhesherbes. De modo que ficamos com a impressão de que a biografia de Voltaire é uma espécie de biografia do século, justificando o fato de a tradição ter chamado ao século XVIII o século de Voltaire.

Mas não é, como pode parecer por minha apresentação desajeitada, um catálogo de clássicos que pretende ser uma reflexão geral sobre um século inteiro. É uma obra modesta, curta, despreocupada em relação às lacunas que uma abordagem honesta necessariamente deixa. Mas também é uma obra gigante, apoiada em documentos, e que trata de assuntos realmente interessantes, como a formação da opinião pública, a preservação da celebridade, e muito mais.

 

Jean Huber, Voltaire racontant une fable.

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