O Dicionário Filosófico parece uma confortável conversa, sobre os mais diversos temas, com uma mente brilhante. Apesar de ser dito, no prefácio do autor, que não se trata de um livro para ser lido de uma vez só, decidi pegá-lo na íntegra para preservar esse contraste entre assuntos e perceber de maneira mais forte o ecletismo de sua mente genial. Somente por isso, pude perceber que a obra fora escrita na ordem alfabética em que fora editada, o que torna muito divertidas as referências entre um verbete e outro, como esta: É difícil passar das pessoas que se beijam àquelas se devoram (verbete Antropófagos, que vem após o verbete Amor).
Ao contrário do que parece, o Dictionnaire Philosophique não pode ser tomado como uma boa síntese do pensamento voltairiano. Acredito que seus Contos levam muita vantagem no quesito de abrangência de idéias. O Dicionário é mais uma conversa organizada por tópicos, bom para esclarecer dúvidas objetivas, imediatas (como: Voltaire acreditava em Deus? Voltaire era monarquista? etc), mas fraco para formar na mente do leitor uma ideia ampla da visão de mundo do filósofo. Para tanto, os Contos continuam sendo minha primeira sugestão.
Mas é claro que o Dicionário tem seus méritos. O mais importante deles é oferecer ao interessado um leque de respostas a perguntas que ele nem tinha pensado em formular ao autor. O verbete sobre os antropófagos, citado, é um desses exemplos. Também aquele sobre o amor, aquele sobre a beleza, sobre o luxo, sobre inundações e um, notável, sobre crítica literária. Futuramente, eu talvez escreva sobre os que achei mais interessantes. O fato é que essas pautas arbitrárias são questões sobre as quais não há espaço em outras obras do autor. O Dicionário Filosófico é um livro onde se puderam colocar ideias sobre absolutamente qualquer tema, o que permite ver o gênio de Voltaire se debruçar, muitas vezes de modo desleixado, sobre assuntos insólitos. E, não raro, desse acaso saem pensamentos bastante incisivos, coisa característica da sabedoria subversora da época.
No entanto, o Dicionário não é invertebrado. Apesar de os verbetes curiosos serem um atrativo pelo qual já vale a leitura, há aqueles principais, que compõem nitidamente o motivo pelo qual a obra tornou-se uma das mais valorizadas pela posteridade. São eles: Certeza, Destino, Deus, Igualdade, Fanatismo, Idolatria, Liberdade, Religião, Superstição, Tolerância, Tirania. Dentro desses temas de suma importância para o pensamento iluminista, não encontramos, no Dicionário Filosófico, a essência da ideia que deles fazia o século. Encontramos respostas a perguntas pontuais, que, juntas, podem formar um esboço, altamente comprometido, do que seria o pensamento corrente. Comprometido porque, embora Voltaire pretenda, com a obra, um catecismo do esclarecimento, mal consegue um catecismo voltairiano. A enxurrada de ideias que acomete o leitor a cada um desses tensos verbetes não é proporcional à forma pretensamente preceitual da obra. Muitos desses verbetes, como aquele sobre idolatria, fazem uma análise histórica relativamente longa salpicada de veneno anticlerical. Portanto, muitos verbetes são antes ensaios que definições lapidares.
A enxurrada de ideias, porém, revela também conceituações muito hábeis. E, se a escrita ensaística parece imperar em alguns tópicos, em outros o filósofo desenvolve um raciocínio que sabe muito bem de onde parte e onde chega, fazendo uso da lógica corrosiva caracteristicamente sua. Preconceito é uma opinião sem julgamento (verbete Preconceitos); Quase tudo o que está além da adoração de um ser supremo e da submissão íntima a suas ordens eternas é superstição (verbete Superstição). Partindo de definições tais, quase axiomáticas, o filósofo traça seu curso típico e expõe nuas as igrejas cristãs e o carrossel de suas incoerências.
Certamente, esses verbetes mais estrondosos são os que mais chamam atenção. Mas não ocupam, fisicamente, a maior parte do livro. A chamada crítica religiosa é a categoria dominante do Dicionário. Dos 117 verbetes, aproximadamente 45 são bíblicos, e, ademais, são os que consomem maior número de páginas. De qualquer modo, a análise rigorosa, criteriosa, dos fenômenos cristãos estende-se por toda obra, de modo que a pluralidade dos verbetes é um pretexto para se criticar por todos os lados imagináveis a antifilosofia religiosa.
O lado voltairiano menos aceitável ao leitor muito escrupuloso surge então: um tal empenho na crítica bíblica resulta em fortes chicotadas aos judeus em geral. O povo judeu, para Voltaire, era o mais medíocre dos povos. Jamais contribuiu à civilização, sua cultura é uma cópia das circunvizinhas e da grega. Sua ocupação da Palestina é contrária ao direito natural do povo filisteu. Jamais colaborou ao desenvolvimento dos Estados senão por meio de empréstimos usurários. O ataque mordaz aos judeus e à cultura judaica atravessa toda obra. Com isso, costuma-se posicionar Voltaire entre os pais do antissemitismo moderno. A tal afirmação, eu responderia: ‘Com certeza Voltaire não gostava de judeus – é preciso ser cego para não vê-lo. Mas seu pensamento não tem relação confiável com as doutrinas antissemitas posteriores, porque Voltaire jamais falou em nome da perseguição; fazê-lo seria abrir mão do núcleo de sua filosofia: a tolerância. Então, apesar de toda crítica ao povo judeu, o filósofo nunca deixaria de achar absurda sua perseguição’.
Apenas mais uma curiosidade. O artigo Igualdade traz o raciocínio de que (literalmente) o gênero humano, tal como é, não pode subsistir a menos que haja uma infinidade de homens úteis que nada possuem, para chegar à conclusão de que a igualdade é, ao mesmo tempo, a coisa mais natural e a mais artificial do mundo. Marx, parece-me, é grande tributário de Voltaire.
Edição: Dictionnaire Philosophique. Éditions Garnier Frères, Paris, s/d. Com introdução, variantes e notas pelo intrometido Julien Benda.
Jean-Baptiste Le Vachez, L'homme unique a tout age. 1778.
-30.027704
-51.228735
Read Full Post »