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Archive for the ‘Tchecov’ Category

Ontem à noite, o StudioClio apresentou o embate entre os contos de Machado de Assis e os de Tchecov, dando continuidade ao Sport Club Literatura, que começou com a partida Orgulho e Preconceito (Austen) contra Middlemarch (Eliot), há umas semanas. Trata-se de um encontro em que são confrontados aspectos diversos das obras com vistas a obter um placar. A partida é conduzida por uma dupla de juízes, mas a torcida tem liberdade para interferir a qualquer momento. É, no mínimo, instigante.

Ontem, eu dizia, foram os contos de Machado contra os contos de Tchecov. A primeira coisa que me perguntei foi: que contos? Bom, foi também a primeira coisa que os juízes deixaram claro. Escolheram três contos de cada: Missa do Galo, A Cartomante e Pai contra Mãe, de Machado; O Beijo, A Dama do Cachorrinho e Angústia, de Tchecov. Pretendiam chegar ao resultado opondo os contos, nessa ordem, e vendo qual levaria a melhor sobre o outro, mas acabaram avaliando aspectos mais genéricos dos autores, de modo que a discussão foi muito mais interessante do que teria sido do outro jeito.

O resultado final, eu já previa, foi uma vitória fácil de Machado de Assis. 3 a 1. Pelo que pude compreender, os gols do brasileiro deveram-se a: capacidade de prender o leitor do início ao fim do conto; o fato de ter erguido sua obra sem ter sido precedido de um grande escritor em língua portuguesa (o que não acontece com Tchecov, que escreveu sob a sombra de Dostoiévski e Gógol); e pela elaboração linguística (gol chorado por um dos juízes, uma vez que essa é uma dimensão que escapa à obra do escritor russo, a que só temos acesso sob o filtro da tradução). O gol de Tchecov foi em razão da ambiguidade de seu texto, sobretudo em Angústia, a forma como exprime uma gravidade por meio de descrições aparentemente inocentes, seu jogo de imagens (o que, afinal, também não falta em Machado). Para os juízes, Tchecov perde por causa do peso de seu texto (“zagueiro russo”) e pelo excesso de explicações, não deixando espaço para o leitor. No entanto, nada me faz deixar de pensar que Machado só ganhou porque jogou em casa.

Vou deixar aqui, rapidamente, a minha versão do jogo, pois, antevendo o resultado pró-Machado, publicamente correto, não achei que fosse vão imaginar minha partida particular.

Não me atenho à escolha dos contos (Machado estava com seus melhores; Tchecov, não. O Beijo foi escolhido como um conto fundamental, mas, no jogo, só foi criticado – Varka, ou Sonhos, teria feito muito mais justiça ao que o autor tem de melhor), pois a decisão recaiu sobre características gerais.

Muito bem, poderíamos começar por algo como agudeza intelectual, perspicácia. A capacidade de ser incisivo, direto, sem ser vulgar. Brincar com o raciocínio do leitor, jogar com suas expectativas, escrever inteligentemente. Qual a língua mais afiada? Ora, certamente a de Machado. Tchecov, pelo que conheço, também tem sua agudeza, mas, de fato, ela não parece ser tão objetiva quanto a de Machado. Em minha avaliação amadora, mas amante, é 1 a 0 para Machado de Assis.

Um segundo critério poderia ser algo como “quem fez mais escola”. Claro que isso é totalmente exterior aos contos, e mesmo aos autores. Mas, vamos lá, com isso também reflito sobre minha própria posição de leitor. Machado de Assis, como dito acima, foi o primeiro grande escritor moderno em língua portuguesa, e é tradicionalmente o maior que o Brasil já teve. Parece-me impossível, portanto, que o placar não fique 2 a 0. Mas Tchecov é o pai do conto moderno, um mestre. Se Machado é o melhor escritor brasileiro, isso não faz dele melhor contista que Tchecov. Embora o russo tenha escrito sob a influência de grandes nomes, isso não faz dele menos criativo que Machado. Tchecov é reconhecidamente o mestre do conto, e, mundialmente, fez mais escola que Machado. Um gol para ele é inegável nesse critério: 2 a 1 para Machado.

Eu ignoro o quesito “elaboração linguística”, pois não leio em russo. No seu lugar, eu consideraria a beleza de forma geral. A estética, também a capacidade de trazer no conto uma visão plástica, por trás da qual se esconde, na verdade, o artista. Estamos com dois realistas, trata-se de saber qual realismo é o mais poético. Obviamente, Tchecov. Não tanto pela inaptidão de Machado de Assis com a poesia, mas pela incrível sensibilidade do escritor eslavo, que faz de tudo um personagem. Seus contos têm cores. O que é perspicácia em Machado é sensibilidade em Tchecov. 2 a 2.

Há vários critérios que poderiam se anular entre os autores. Por exemplo, seria tão inútil cobrar do autor russo uma grande percepção do jogo social urbano quanto cobrar de Machado uma atenção refinada da paisagem camponesa – portanto, não digamos que Machado mereceria um gol por ter captado as manhas cariocas. Seria, também, inútil perguntar-se quem diz mais a partir de pouco em seus contos, pois Machado é mestre na técnica da sugestão dissimulada, e Tchecov é especialista em tirar o universo de uma gota d’água – compensam-se, portanto. Seria inútil dar um gol a Machado por sua ironia genial, sendo que se teria de dar outro tanto ao russo por sua fantástica melancolia. Também seria inútil tentar decidir o jogo com um critério baseado no papel do leitor na escrita dos autores, pois, enquanto Machado apela à astúcia do leitor, o papel que se assume lendo Tchecov relaciona-se à criatividade, algo semelhante ao que se dá quando se observa um quadro, uma contemplação que, no entanto, exige que se jogue o jogo; o leitor, em Tchecov, parece-me, é um criador de imagens (essa é impressão que guardo fortemente, o que me fez torcer o nariz quando os juízes concordaram que o contista russo traz as coisas ‘prontas demais’). Acredito, portanto, que os dribles do brasileiro e a categoria do russo configuram uma série de ataques defendidos pelo adversário.

Um empate? Eu poderia dar um gol a Tchecov, nos últimos minutos, por ter morrido aos quarenta e poucos, enquanto Machado teve bastante tempo para errar – de onde concluiria que o contista russo, tendo feito tamanha obra sem o amadurecimento da velhice, teria mais talento; ou pelas condições adversas de sua vida. Mas esse seria um gol anulado. O gol da vitória não deveria ter origem em uma jogada tão desleal com o brasileiro. Também poderia dar um gol a Tchecov simplesmente por preferi-lo, por causa de um padrão literário estritamente pessoal, que “me prende”, mas definir assim subjetivamente a partida seria injusto, e prefiro preservar o pouco que me resta de imparcialidade. Digamos que esse tenha sido um chute na trave.

Então, meu jogo terminaria 2 a 2; Tchecov com um gol anulado e um chute na trave.

Machado de Assis

Antonin Tchecov

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Contos, Tchecov

Começando com dois recuos: Primeiro, minhas poucas referências em literatura russa são meia dúzia de obras de Dostoiévsky e Tolstói, além de duas de Nabokov, de modo que não posso julgar competentemente o Tchecov senão pelo meu próprio gosto. Segundo, demorei para escrever sobre ele; um pouco das impressões se apagou, embora tão fortes tenham sido que, para escrever sobre essa leitura, não preciso me fiar somente em lembranças, mas bastante em sentimentos.

O volume que peguei continha os contos La Cigale, Sonhos, O Beijo, Varka, O Buraco e A Estepe, além de um pequeno ensaio sobre literatura russa, de autoria de Henrique de Campos, prefaciando o livro. A tradução dos contos é de Costa Neves. Edição antiga, 1952, da Jackson.

Sonhos, Varka e A Estepe foram os que mais me impressionaram. Mais artista que Dostoiévsky e Tolstói (sem pôr em questão a qualidade destes como grande pensador e grande literato, respectivamente), Tchecov é uma espécie de pintor. Em A Estepe (não importa se conto ou novela) narrativa de uma viagem pelas pradarias ucranianas, a natureza é tão viva quanto os personagens, e estes são como que parte da paisagem. No rapidíssimo Varka, uma situação insuportável torna-se apreciável tal é a precisão com que é apresentada. Isso talvez resida em um cuidado minucioso com a economia verbal, como especula Henrique de Campos em seu estudo; em Tchecov, nada mais que o preciso – todos os adjetivos desnecessários são suprimidos.  Não se fica numa piscina de qualidades e defeitos; ao contrário, Tchecov conta com a imaginação do leitor. Ao que me parece, é de uma prudência não menos elegante que sensível. A essa economia perspicaz, acrescente-se um certo desapego ao enredo (exceto, creio, em La Cigale). Em Sonhos, dois soldados levam um homem pela estrada a uma cidade que nunca chega, e, nessa espécie de caminho para lugar nenhum, aos poucos, falam de si.

Não há uma mensagem, uma idéia nem uma denúncia que seja claramente identificável nesses contos. Nem o propósito de mostrar a sociedade como ela é, apontar seus vícios, idealizar suas virtudes, achá-la boa, ruim, desesperadora ou grandiosa. Não vi, com certeza, nada disso. Por isso, achei um texto tão sedutor. Sedutor e marcante. Porque a beleza de Tchecov não é supérflua, descartável, ela está em tudo, ela liga as coisas numa espécie de totalidade, que ora é plácida, ora é furiosa, ora é inocente, ora é majestosa. Tchecov é um pintor, seus contos são quadros. Leia A Estepe e diga que não é verdade.

Kazimir Malevich. Boulevard. 1903.

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