Voltaire Literário é parte da sequência completada por Voltaire Político e Voltaire Historiador, lançada pelo professor Marcos Antônio Lopes. Também tenho os outros dois, pretendo ler em seguida. São todos pequenos, de menos de 150 páginas, e poderiam mesmo fazer um só volume. Aliás, li em algum lugar que esse três livros são, originalmente, a tese de doutorado do autor, chamada Voltaire: a História, o Príncipe e a Virtude.
Basicamente, Voltaire Literário trata dos aspectos historiográficos presentes nos contos do filósofo. São cinco capítulos, organizados tematicamente, que buscam demonstrar que, nesses contos, há mais do que divertimento, ridicularização e ataques à Igreja. Com certeza, como em toda sua obra, a ficção de Voltaire é repleta de características circunstanciais, que estavam, perfeitamente, nos propósitos do autor. O que o professor Marcos Antônio parece fazer é evidenciar, por trás desses aspectos rasos do texto, relacionados, por exemplo, à bajulação da duquesa de Maine ou ao escárnio de jesuítas, o debate teórico que se desenrolava sobre como se deve escrever a história.
Voltaire participa da transformação que, no século XVIII, se definiria como uma espécie de secularização do pensamento histórico, no sentido de que a história providencialista, representada, entre outros, por Bossuet, sofria, nas palavras do professor, a pressão de impactos particularmente mortais. Nosso filósofo leva ao ridículo a tradição mostrando suas incoerências da maneira, digamos, menos delicada, como em Os Ouvidos do Conde de Chesterfield e o Capelão Goudman, Memnon e Zadig.
As formas que Voltaire dá a seu pensamento sobre história, nos contos, estão contidas no carrossel de desventuras por que passam seus protagonistas. Apresentar a evolução humana como um acúmulo de erros levados a cabo pela ambição desenfreada e o fanatismo dos homens é o modo como o filósofo faz, em Cândido e Zadig, por exemplo, passar diante dos olhos das personagens o mundo como ele é. A exagerada pretensão realista de Voltaire, que, para mostrar que este não é o melhor dos mundos, mostra que é o pior, parece ser uma resposta à visão idealista da história sagrada, e, na verdade, a qualquer visão que esconda do homem seu destino funesto nesse vale de lágrimas.
Para o Príncipe das Luzes, a história carece de sentido, pouco mais é que séculos e séculos de corrupção, vício e pretensão, entrecortados por pequenos períodos de grandeza encabeçados por homens como Júlio Cesar e Luís XIV. O único progresso que há, e isso torna desesperadoramente lenta a evolução humana, é levado a cabo por espíritos esclarecidos, que possuem uma visão acima da comum dos homens. Tal interpretação da história insere Voltaire, segundo a tese do professor Marcos Antônio, na tradição historiográfica clássica, pois se por um lado a presença de Deus na história do homem é combatida, por outro o providencialismo é posto nas mãos de monarcas ilustrados. Assim é que o personagem do príncipe figura na maior parte de seus contos, de modo que tais estórias possam ser colocadas na memória dos espelhos de príncipes, mas em formato iluminista. Isso faz com que a ruptura proposta por Voltaire em relação ao pensamento tradicional, embora tenha tido um valor imenso, não tenha sido total.
Humanizando os monarcas consagrados, destruindo mitos religiosos e nacionais, expondo as mazelas dos homens nesse mundo deveras prosaico, os contos de Voltaire são a imagem da ficção iluminista que constitui, em sua guerra à tradição, como diz Paul Hazard, citado por Marcos Antônio Lopes, a maior modificação que a literatura alguma vez terá sofrido. Talvez isso explique por que o autor tenha preferido os contos, uma vez que a obra ficcional de Voltaire seja muito maior que o número de contos que escreveu, compreendendo muito de poesia, epopeia e teatro. Talvez os contos filosóficos, sendo um gênero praticamente inventado pelo filósofo no calor do combate, correspondam mais facilmente às expectativas do autor acerca da relação entre filosofia e literatura. O conto voltairiano, de fato, se presta melhor a ilustrar o deslocamento operado na literatura iluminista, quando a estética dá lugar à crítica, ao chicote banhado em sal e vinagre (adorei essa expressão). Apesar de tudo o que os contos oferecem, eles não são, no entanto, mais que uma parte do Voltaire literário.
Ilustração para Zadig, ou O Destino. s/d
-30.027704
-51.228735
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